- KazuyaFAMILIA TARTARUGA
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Contos
24/3/2014, 09:37
Gosto muito de contos e resolvi criar este tópico para que aqueles que também gostam pudessem postar seus favoritos.
Três dos meus favoritos são:
A Aposta de Anton Tchekhov, A Esfinge Sem Segredo de Oscar Wilde e Coração Denunciador de Edgar Allan Poe.
Três dos meus favoritos são:
A Aposta de Anton Tchekhov, A Esfinge Sem Segredo de Oscar Wilde e Coração Denunciador de Edgar Allan Poe.
- A Aposta:
Era uma noite escura de outono. O velho banqueiro media a passadas o seu gabinete e recordava como, quinze anos atrás, no outono, dera uma festa. Nessa reunião estivera muita gente inteligente e houvera muitas conversas interessantes. Entre outros assuntos, falara-se da pena de morte. Os convidados, entre os quais havia não poucos sábios e jornalistas, na sua maioria tinham uma atitude negativa para com a pena de morte. Achavam esse método de punição obsoleto, impróprio para os Estados cristãos e imoral. A opinião de alguns deles era que a pena de morte deveria ser definitivamente abolida e substituída pela prisão perpétua.
— Não estou de acordo — disse o banqueiro, dono da casa. — Nunca experimentei nem a pena de morte nem a prisão perpétua, mas, se é possível julgar a priori, a minha opinião é que a pena de morte é mais moral e mais humana do que a prisão. A execução mata duma vez, ao passo que a prisão perpétua mata aos poucos. Que carrasco é, pois, mais humano — aquele que mata de repente ou o que arranca a vida no decorrer de muitos anos?
— Tanto uma coisa como outra são igualmente imorais — observou um dos convidados —, porque ambas têm a mesma finalidade — tirar a vida. O Estado não é Deus. Não tem o direito de tirar aquilo que não pode devolver, se quiser.
Entre os convidados estava um jurista, jovem de uns vinte e cinco anos. Quando lhe perguntaram a sua opinião, ele disse:
— Tanto a pena de morte como a prisão perpétua são igualmente imorais, mas, se me oferecessem a escolha entre a morte e a prisão perpétua, eu certamente escolheria a segunda. Viver de qualquer maneira é melhor do que não viver de todo.
Começou uma discussão animada. O banqueiro, que era então mais jovem e mais nervoso, súbito ficou fora de si, deu um murro na mesa e gritou para o jovem advogado:
— Não é verdade! Aposto dois milhões que o senhor não aguentaria numa cadeia nem cinco anos.
— Se o senhor fala sério — respondeu-lhe o advogado —, eu aposto que posso aguentar a prisão não por cinco, mas por quinze anos!
— Quinze? Aceito! — gritou o banqueiro. — Senho¬res, eu ponho na mesa dois milhões!
— De acordo! O senhor põe dois milhões, e eu, a minha liberdade! — disse o jurista.
E essa aposta selvagem e insensata realizou-se! O banqueiro, que naquele tempo não tinha conta dos seus milhões, mimado e leviano, estava encantado com a aposta. Durante a ceia, ele pilheriava com o jurista e dizia:
— Caia em si, jovem, enquanto ainda não é tarde. Para mim, dois milhões são uma ninharia, mas o senhor se arrisca a perder três ou quatro dos melhores anos de sua vida. Eu digo três ou quatro, porque o senhor não aguentará mais do que isso. Não esqueça tampouco, infeliz, que a prisão voluntária é muito mais penosa do que a compulsória. O pensamento de que, a cada momento, o senhor pode sair para a liberdade vai lhe envenenar toda a existência na prisão. Eu tenho pena do senhor!
E, agora, o banqueiro, andando dum lado para outro, recordava tudo isso e se perguntava:
— Para que foi essa aposta? Qual era o proveito disso? O jurista perdeu quinze anos de sua vida, e eu jogo fora dois milhões? Será que isso poderá provar aos outros que a pena de morte é pior ou melhor que a prisão perpétua? Não e não — é tolice e insensatez. De minha parte, isso foi um capricho de homem enfastiado, e, da parte do jurista, nada mais que avidez de dinheiro...
E ele continuou recordando o que aconteceu depois da famosa noitada. Ficou resolvido que o advogado passaria a sua reclusão, sob a mais severa vigilância, numa das alas construídas no jardim do banqueiro. Combinou-se que, no decorrer de quinze anos, ele ficaria privado do direito de atravessar a soleira da sua ala, de ver gente, ouvir vozes humanas e receber cartas e jornais. Permitiu-se que ele possuísse um instrumento musical, lesse livros, escrevesse cartas, tomasse vinho e fumasse. Pelo trato, suas comunicações com o mundo exterior poderiam ser apenas mudas, através de uma janelinha especialmente construída para esse fim. Tudo aquilo de que precisasse, livros, notas musicais, vinho e o resto, ele receberia, por intermédio de bilhetes, em qualquer quantidade, mas somente pela janelinha. O contrato previa todos os detalhes e minúcias, que faziam a reclusão rigorosamente solitária, e obrigava o advogado à permanência de quinze anos exatos, das doze horas de 14 de novembro de 1870 até às doze horas de 14 de novembro de 1885. A menor tentativa, da parte do jurista, de quebrar qualquer das condições, ainda que dois minutos antes do término do prazo, libertava o banqueiro da obrigação de pagar-lhe os dois milhões.
Durante o primeiro ano o jurista, conforme se podia julgar pelos seus lacônicos bilhetes, sofreu muito da solidão e do tédio. Da sua ala, constantemente, dia e noite, ouviam-se os sons do piano. Ele recusou o vinho e o tabaco. O vinho, escrevia ele, excita os desejos, e os desejos são os primeiros inimigos do prisioneiro; além disso, não existe nada mais aborrecido do que tomar bom vinho sem ver ninguém. Quanto ao tabaco, poluía o ar do seu quarto. No primeiro ano, mandaram-lhe livros, de preferência de conteúdo leve: romances com complicadas intrigas amorosas, contos policiais e fantásticos, comédias, etc.
No segundo ano, a música silenciou na ala, e o jurista, nos seus bilhetes, exigia somente os clássicos. No quinto ano, novamente ouviu-se música, e o prisioneiro pediu vinho. Aqueles que o observavam através da janelinha diziam que todo esse ano ele só comia, bebia e ficava deitado na cama, bocejava muito e falava consigo mesmo, em tom irado. Não lia livros. Às vezes, durante a noite, ele se punha a escrever, escrevia longamente e, pela madrugada, rasgava em pedaços tudo o que escrevera. Mais de uma vez ouviram-no chorar.
No sexto ano de reclusão, o prisioneiro dedicou-se com afinco ao estudo de línguas, filosofia e história. Ele se entregou a esses estudos com tamanha avidez, que o banqueiro mal tinha tempo de fazer vir os livros necessários. No decorrer de quatro anos, por exigência do prisioneiro, foram importados cerca de seiscentos volumes. No período dessa paixão, o banqueiro recebeu, entre outras, esta carta:
“Meu caro carcereiro! Escrevo-lhe estas linhas em seis idiomas. Mostre-as a pessoas competentes, para que as leiam. Se não encontrarem nem um erro, peço-lhe encarecidamente que mande dar um tiro de espingarda no jardim. Esse tiro me informará que os meus esforços não foram vãos. Os gênios de todos os séculos e países falam línguas diversas, mas em todos eles arde a mesma chama. Oh, se soubesse que inefável felicidade experimenta hoje a minha alma porque agora eu os posso compreender!” O desejo do prisioneiro foi atendido. O banqueiro mandou dar dois tiros de espingarda no jardim.
Mais tarde, depois do décimo ano, o jurista ficou sentado, imóvel, à mesa, e lia somente o Evangelho. Parecia estranho ao banqueiro que um homem que assimilara em quatro anos seiscentos tomos eruditos gastasse um ano inteiro na leitura de um único livro, de fácil compreensão e pouca espessura. Depois do Evangelho, vieram a história das religiões e a teologia.
Nos últimos dois anos de reclusão, o encarcerado leu em quantidade enorme, sem nenhum critério. Ora ele se ocupava de ciências naturais, ora exigia Byron ou Shakespeare. Havia bilhetes seus em que pedia que lhe mandassem simultaneamente uma obra de química, um compêndio de medicina, um romance e um tratado de filosofia ou de teologia. Suas leituras semelhavam algo como se ele, boiando no mar entre os destroços de um navio naufragado e querendo salvar sua vida, se agarrasse convulsivamente ora a um destroço, ora a outro!
II
O velho banqueiro relembrava tudo isso e pensava:
“Amanhã às doze horas ele recuperará a liberdade. Pelo contrato, eu terei de lhe pagar dois milhões. Se eu pagar, tudo estará perdido — eu estarei definitivamente arruinado”.
Quinze anos atrás ele não tinha conta dos seus milhões, mas agora tinha medo de se perguntar o que tinha mais: dinheiro ou dívidas? Jogadas imprudentes na Bolsa, especulações arriscadas e a impulsividade, da qual ele não conseguira se libertar nem mesmo na velhice, pouco a pouco minaram os seus negócios, e o ricaço orgulhoso, destemido e autossuficiente transformou-se num banqueiro de categoria mediana, que tremia a cada alta ou baixa das ações.
— Maldita aposta — balbuciava o velho, apertando cabeça, em desespero. Por que esse homem não morreu? Ainda está com quarenta anos apenas. Ele me tirará os últimos recursos, casar-se-á, gozará a vida, jogará na Bolsa, e eu, como um mendigo, ficarei a olhá-lo com inveja e a ouvir dele, todos os dias, a mesma frase: “Eu lhe devo toda a felicidade da minha vida, permita-me que o ajude!” Não, isso é demais! A minha única salvação da bancarrota e da vergonha é a morte desse homem!
Soaram as três horas. O banqueiro ficou atento: na casa todos dormiam e só se ouvia, atrás das janelas, o farfalhar das árvores friorentas. Procurando não fazer nenhum ruído, ele tirou do cofre-forte a chave da porta que não fora aberta durante quinze anos, vestiu o capote e saiu da casa.
O jardim estava escuro e frio. Chovia. Um vento áspero e gelado uivava no jardim e não dava sossego às árvores. O banqueiro forçava a vista, mas não conseguia distinguir nem a terra, nem as alvas estátuas, nem a ala, nem as árvores. Aproximando-se do lugar onde ficava a ala, ele chamou o guarda por duas vezes. Não houve resposta. Decerto, o guarda se abrigara do mau tempo e agora dormia em algum canto da cozinha ou do caramanchão.
“Se eu tiver coragem suficiente para executar o meu plano”, pensou o velho, “as primeiras suspeitas recairão sobre o guarda.”
Ele encontrou, tateando no escuro, os degraus e a porta, e entrou no vestíbulo da ala; depois, tateando sempre, entrou no pequeno corredor e acendeu um fósforo. Ali não se via vivalma. Havia uma cama sem colchão e, num canto, a mancha escura de uma estufa de ferro. Os lacres da porta que dava para o quarto do prisioneiro estavam intactos.
Quando o fósforo se apagou, o velho, tremendo de emoção, espiou pela janelinha.
No quarto do prisioneiro ardia a chama baça de uma vela. Ele mesmo estava sentado diante da mesa. Só se viam as suas costas, os cabelos e as mãos, Sobre a mesa, nas duas poltronas e no tapete junto à mesa, espalhavam-se livros abertos.
Cinco minutos transcorreram sem que o prisioneiro se mexesse uma só vez... Quinze anos de reclusão tinham-no ensinado a permanecer perfeitamente imóvel. O banqueiro bateu na janelinha, e o prisioneiro não respondeu às batidas com um movimento que fosse. Então o banqueiro arrancou, com cuidado, os lacres da porta e introduziu a chave no buraco da fechadura. A fechadura enferrujada emitiu um som rouco e a porta rangeu. O banqueiro esperava que imediatamente se ouvisse uma interjeição de espanto e passos, mas transcorreram uns três minutos e atrás da porta tudo continuava silencioso como antes. Ele decidiu-se a penetrar no quarto.
Diante da mesa estava sentado um homem que não se parecia com os homens comuns. Era um esqueleto coberto de pele, com longos cachos femininos e barba hirsuta. Sua tez era amarela, com matizes terrosos, as faces encovadas, as costas longas e estreitas, e a mão que sustentava a cabeça descabelada era tão fina e magra que dava arrepios olhar para ela. Nos seus cabelos já brilhavam fios de prata e, olhando o seu rosto encovado de velho, ninguém acreditaria que ele tinha apenas quarenta anos. Ele dormia... Diante da sua cabeça inclinada, na mesa, estava uma folha de papel, na qual estava escrita alguma coisa em letra miúda.
“Homem lamentável!”, pensou o banqueiro. “Dorme e, decerto, sonha com os seus milhões! E, no entanto, basta que eu segure esse semimorto, atire-o na cama, abafe-o de leve com o travesseiro, e a mais minuciosa diligência policial não encontrará sinal algum de morte violenta. Mas leia¬mos primeiro o que ele escreveu aí...”
O banqueiro apanhou o papel da mesa e leu o seguinte:
“Amanhã às doze horas eu receberei a liberdade e o direito de comunicação com os meus semelhantes. Mas, antes de deixar este quarto e rever o sol, julgo necessário dizer-vos algumas palavras. Em sã consciência e diante de Deus, que me vê, eu vos declaro que desprezo a liberdade, a vida, a saúde, e tudo aquilo que nos vossos livros é chamado de bens da vida”.
“Durante quinze anos estudei atentamente a vida terrena. É verdade que eu não via a terra e os homens, mas, nos vossos livros, sorvia vinhos aromáticos, entoava canções, caçava nos bosques cervos e porcos selvagens, amava mulheres... Beldades, leves como nuvens, criadas pela magia dos vossos poetas geniais, visitavam-me de noite e me sussurravam contos encantados que embriagavam a minha mente. Nos vossos livros, eu escalava cumes do Elbruz e do monte Branco e via de lá como nascia o sol de madrugada e, ao anoitecer, como ele inundava o firmamento, o oceano e os cumes das montanhas de ouro rubro; eu via de lá os relâmpagos fendendo as nuvens por cima da minha cabeça; eu via os campos verdejantes, os rios, os lagos, as cidades, ouvia o canto das sereias e a música das flautas dos pastores, sentia as asas de formosos demônios que vinham conversar comigo a respeito de Deus... Nos vossos livros, eu mergulhava em abismos sem fundo, fazia milagres, matava, queimava cidades, pregava novas religiões, conquistava reinos inteiros...”
“Os vossos livros deram-me sabedoria. Tudo aquilo que a infatigável mente humana criou durante séculos está comprimido no meu cérebro num pequeno novelo. Eu sei que sou mais sábio do que todos vós. E eu desprezo os vossos livros, desprezo todos os bens terrenos e a sabedoria. Tudo é mesquinho, perecível, espectral e ilusório, como a miragem. Podeis ser orgulhosos, sábios e belos, mas a morte vos apagará da face da terra, assim como às ratazanas, e a vossa descendência, a vossa história, a imortalidade dos vossos heróis serão congelados ou queimados junto com o globo terrestre.”
“Vós enlouquecestes e tomastes o caminho errado. Tomais a mentira pela verdade e a deformidade pela beleza. Vós ficaríeis admirados se, em consequência de circunstâncias imprevistas, nascessem, nas macieiras e laranjeiras, em vez de maçãs e laranjas, sapos e lagartixas, ou se as rosas de repente começassem a exalar odores de cavalo suado. Assim eu me admiro de vós, que trocastes o céu pela terra. Não vos quero compreender.”
“Para demonstrar-vos na prática o meu desprezo para com tudo o que é a vossa vida, renuncio aos dois milhões com os quais sonhei em outros tempos como se fossem o paraíso que hoje eu desdenho. Para me privar do direito a eles, sairei daqui cinco horas antes do prazo combinado e, desse modo, quebrarei o trato...”
Tendo lido isso, o banqueiro repôs a folha na mesa, beijou a cabeça do estranho homem e, chorando, saiu da ala. Nunca antes, em tempo algum, mesmo após uma perda pesada na Bolsa, ele sentira por si mesmo um desprezo tamanho, como naquele momento. Chegando em casa, ele se deitou na cama, mas a emoção e as lágrimas não o deixaram adormecer...
No dia seguinte de manhã os guardas vieram correndo, pálidos, e lhe comunicaram que tinham visto o homem que vivia na ala se esgueirar pela janela para o jardim, dirigir-se para o portão e desaparecer. O banqueiro dirigiu-se imediatamente para a ala e, diante dos criados, constatou a fuga do seu prisioneiro. Para não dar azo a comentários supérfluos, tirou da mesa o papel com a renúncia e, voltando para o seu gabinete, trancou-o no cofre-forte.
- A Esfinge Sem Segredo:
Achava-me numa tarde sentado no terraço do Café Paz, contemplando o fausto e a
pobreza da vida parisiense, a meditar, enquanto bebericava o meu vermute, sobre o
estranho panorama de orgulho e miséria que desfilava diante de mim, quando ouvi
alguém pronunciar o meu nome. Voltei-me e dei com os olhos em Lord Murchison. Não
nos tínhamos tornado a ver desde que estivéramos juntos no colégio, havia isto uns dez
anos, de modo que me encheu de satisfação aquele encontro e apertamos as mãos
cordialmente. Tínhamos sido grandes amigos em Oxford. Gostaria dele imensamente. Era
tão bonito, tão comunicativo, tão cavalheiresco. Costumávamos dizer dele que seria o
melhor dos sujeitos, se não falasse sempre a verdade, mas acho que, na realidade, o
admirávamos mais justamente por causa da sua franqueza. Encontrei-o muito mudado.
Parecia inquieto, perturbado e em dúvida a respeito de alguma coisa. Senti que não podia
ser o cepticismo moderno, pois Murchison era um dos conservadores mais inabaláveis e
acreditava no Pentateuco com a mesma firmeza com que acreditava na Câmara dos Pares.
De modo que conclui que havia alguma mulher naquilo e perguntei-lhe se ainda não se
havia casado.
- Não compreendo as mulheres bastante bem - respondeu.
- Meu caro Geraldo - disse -, as mulheres estão feitas para serem amadas e não para
serem compreendidas.
- Não posso amar sem ter confiança absoluta - replicou.
- Creio que há um mistério na sua vida, Geraldo - exclamei. - Conte-me isso.
- Vamos dar um passeio de carro - respondeu. - Há gente demais aqui. Esse carro
amarelo, não. Um de qualquer outra cor... aquele ali, verde escuro serve.
Dentro de poucos minutos estávamos a descer a trote o bulevar na direção da
Madalena.
- Para onde vamos? - perguntei.
- Oh! para onde você quiser! - respondeu. - Para o restaurante do Bosque.
Jantaremos ali e contar-me-á tudo a respeito da sua vida.
- Primeiro quero que você me conte a sua. Revele-me o seu mistério.
Tirou do bolso uma pequena carteira de marroquim com fecho de prata e entre goume. Abri-a. Dentro havia a fotografia de uma mulher. Era alta e esbelta e de aspecto
singular com grandes olhos misteriosos e cabelos soltos. Parecia uma clairvoyante (1) e
achava-se envolta em ricas peles.
- Qual é a sua opinião a respeito desse rosto - perguntou ele. - Inspira confiança?
Examinei o retrato atentamente. Parecia-me o rosto de alguém que guarda um
segredo, mas o que não podia dizer era se o segredo fosse bom ou mau. Aquela beleza
parecia feita de muitos mistérios reunidos, uma beleza, de fato, mais psicológica do que
plástica, e o ligeiro sorriso que lhe flutuava nos lábios era demasiado subtil para ter
realmente encanto.
- Bem - exclamou ele, impaciente - que me diz?
- É a Gioconda em vestes de luto - respondi. - Conte-me tudo quanto a ela se refere.
- Agora não; depois do jantar - disse ele e começou a conversar a respeito de outras
coisas.
Quando o empregado trouxe o nosso café e os cigarros, lembrei a Geraldo a sua
promessa. Ele levantou-se da sua cadeira, caminhou duas ou três vezes acima e abaixo na
sala e, deixando-se cair numa cadeira de braços, contou-me a seguinte história:
- Uma tarde, aí pelas cinco horas, descia eu pela Rua Bond. Havia uma terrível
aglomeração de veículos e o tráfego quase parado. Perto do passeio estava parado um
carrinho fechado, amarelo, que, por esse ou aquele motivo, atraiu a minha atenção. Ao
passar ao seu lado, vi surgir dele, a olhar para fora, o rosto que lhe mostrei ainda há
pouco. Fascinou-me imediatamente. Fiquei a noite inteira a pensar nele e o dia seguinte
também. Subi e desci várias vezes por entre aquela maldita confusão, lançando um olhar
perscrutador para dentro de todo carro, à espera do carro fechado amarelo. Mas não pude
descobrir ma belle inconnue (2) e afinal comecei a pensar que era ela apenas um sonho.
Cerca de uma semana depois, estava a jantar com Madame de Rastail. O jantar estava
marcado para as oito horas, mas às oito e meia ainda nos achávamos à espera na sala de
visitas. Por fim o criado abriu a porta e anunciou Lady Alroy. Era a mulher que eu
estivera a procurar. Entrou muito devagar, parecendo um raio de lua cercado de renda
cinzenta, e, para intenso deleite meu, pediram-me que a conduzisse à sala de jantar.
Depois de nos sentarmos, observei-lhe com a maior inocência:
«Creio que já a vi, há algum tempo, na Rua Bond, Lady Alroy».
Ela ficou muito pálida e disse-me, em voz baixa:
«Por favor, não fale tão alto. Podem ouvi-lo».
Senti-me desditosíssimo por ter começado tão mal e mergulhei cegamente numa
dissertação sobre peças francesas. Ela falava pouquíssimo, sempre com a mesma voz
baixa e musical, parecendo receosa de que alguém a estivesse escutando. Senti-me
apaixonadamente, estupidamente enamorado e a indefinível atmosfera de mistério que a
cercava excitava, a mais não poder, a minha curiosidade. Quando ela se retirou, logo após
o jantar, perguntei-lhe se poderia visitá-la. Hesitou um momento, olhou em redor para ver
se alguém estava perto de nós e depois disse:
«Sim; amanhã a um quarto para as cinco».
Roguei a Madame de Rastail que me desse informações a respeito dela; mas tudo
quanto pude saber é que era uma viúva, morando numa bela casa em Park Lane e, como
naquele momento um desses cientistas cacetes começasse uma dissertação a respeito de
viúvas, para exemplificar a sobrevivência dos matrimonialmente mais ajustados, despedi me e fui para casa.
No dia seguinte cheguei pontualmente a Park Lane, no momento exato, mas o
mordomo disse-me que Lady Alroy tinha acabado de sair. Dirigi-me ao clube, bastante
desiludido e confuso e, depois de muito refletir, escrevi-lhe uma carta, perguntando-lhe
se me seria permitido tentar a sorte em alguma outra parte. Por vários dias não recebi
resposta, mas afinal chegou-me às mãos um bilhetinho, dizendo-me que estaria ela em
casa no domingo, às quatro e com este extraordinário pós-escrito: «Por obséquio não
torne a escrever para mim aqui; explicar-lhe-ei, quando o vir». No domingo, recebeu-me
e mostrou-se perfeitamente encantadora. Mas quando me despedia, pediu-me que, se
alguma vez tivesse ocasião de escrever-lhe de novo, dirigisse a minha carta para «Sra.
Knox, aos cuidados da Biblioteca Whittaker, Rua Verde». «Há motivos - disse ela - pelos
quais não posso receber cartas em minha própria casa».
Durante toda a temporada via-a amiudadas vezes e a atmosfera de mistério sempre
se manteve em torno dela. Às vezes pensava que se achava ela em poder de algum
homem, mas parecia tão inabordável que não podia acreditar naquilo. Era realmente
difícil para eu chegar a qualquer conclusão, pois ela era como um desses estranhos
cristais que a gente vê em museus e que são, num momento, claros, e em outro, turvos.
Por fim, decidi-me a pedi-la em casamento. Senti-me doente e cansado daquele
incessante segredo que impunha a todas as minhas visitas e às poucas cartas que lhe
enviei. Escrevi-lhe para a biblioteca, perguntando-lhe se podia ver-me na segunda-feira
seguinte, às seis horas. Respondeu que sim e senti-me transportado ao sétimo céu. Estava
apaixonado por ela, a despeito do mistério, pensava então... em conseqüência dele, vejo
agora. Não; era a mulher mesma que eu amava. O mistério perturbava-me, enlouquecia me. Porque o acaso fez-me descobrir a pista?
- Descobriu-a então? - exclamei.
- Receio que sim - respondeu. - Julgue você por si mesmo. Quando chegou a
segunda-feira, fui almoçar com meu tio e cerca das quatro horas encontrava-me em
Marylebone Road. Meu tio, como você sabe, mora em Regent's Park. Queria alcançar
Piccadilly e, para atalhar, meti-me por uma enfiada de becos miseráveis. De repente
avistei à minha frente Lady Alroy, com umespesso véu e caminhando muito apressada.
Ao chegar à derradeira casa da rua, subiu osdegraus, tirou do bolso uma chave, abriu a
porta e entrou. «Aqui está o mistério», disse a mim mesmo e apressei-me em examinar a
casa. Parecia uma espécie de prédio de aluguer. No degrau da porta estava caído o lenço
dela. Apanhei-o e meti-o no bolso. Depois comecei a refletir no que devia fazer. Cheguei
à conclusão de que não tinha o direito de espioná-la. Tomei um carro e segui para o clube.
Às seis horas fui visitá-la. Estava sentada num sofá, em traje de chá, um tecido prateado,
preso por uns broches de certas estranhas pedras lunares que sempre usava. Era de uma
beleza perfeita.
«Alegra-me tanto vê-lo - disse. - Não saí hoje durante o dia».
Olhei para ela, estupefato e tirando o lenço do meu bolso, entreguei-lhe.
«Deixou cair isto esta tarde, Lady Alroy, na Rua Cumnor» - disse eu, calmamente.
Ela olhou para mim, aterrorizada, mas não fez o menor gesto para pegar no lenço.
«Que estava a fazer ali?» - perguntei.
«Que direito tem o senhor de fazer-me perguntas?» - replicou.
«O direito de um homem que a ama» - respondi-lhe. - «Vim aqui para pedi-la em
casamento».
Ocultou o rosto nas mãos e desfez-se em pranto.
«Tem de responder-me» - continuei.
Ela ergueu-se e, fitando-me o rosto, disse:
«Lorde Murchison, nada tenho a dizer-lhe».
«Foi encontrar alguém» - exclamei. - «É esse o seu mistério».
Ela ficou terrivelmente pálida e disse:
«Não fui encontrar ninguém».
«Não pode dizer a verdade?» - exclamei.
«Já a disse» - replicou ela.
Eu estava a enlouquecer, alucinado. Não sei o que disse, mas foram coisas terríveis.
Por fim, saí à pressa da casa. Escreveu-me uma carta no dia seguinte.Devolvi-lhe, intacta
e parti para a Noruega, em companhia de Alan Colville. Um mês depois regressei e a
primeira coisa que vi no Morning Post foi a notícia da morte de Lady Alroy. Apanhara
um resfriado na Ópera e morrera, dentro de cinco dias, de congestão pulmonar. Fecheime em casa e não quis ver ninguém. Tinha-a amado tanto, tinha-a amado tão loucamente!
Meu Deus! Quanto amara eu aquela mulher!
- E você, foi àquela rua, àquela casa? - perguntei.
- Sim - respondeu.
- Um dia, fui à Rua Cumnor. Não podia deixar de fazê-lo. Vivia torturado pela
dúvida. Bati à porta e uma mulher de aspecto respeitável abriu-a para mim. Perguntei-lhe
se havia quartos para alugar.
«Bem, meu senhor - respondeu ela - as salas podem ser alugadas, mas há três meses
que não tenho visto a senhora e como os alugueres estão-se a acumular, o senhor poderá
alugá-las».
«É esta a senhora?» - perguntei, mostrando-lhe a fotografia.
«É ela, sim, com toda certeza» - exclamou a mulher. - «E quando estará de volta,
meu senhor?»
«Morreu» - respondi.
«Oh! meu senhor, não diga!» - disse a mulher. - «Era a minha melhor inquilina.
Pagava-me três guinéus por semana simplesmente para vir sentar-se nesta minha sala de
vez em quando».
«Encontrava-se com alguém aqui?» - perguntei, mas a mulher garantiu-me que tal
não ocorria, que ela sempre vinha sozinha e não via ninguém.
«Mas afinal que fazia ela aqui?» - exclamei.
«Ficava simplesmente sentada na sala, meu senhor, lendo livros e às vezes tomava
chá» - respondeu a mulher.
Não sabia o que dizer, de modo que lhe dei um soberano e saí. Agora, que pensa
que significava tudo aquilo? Não acredita que a mulher estivesse a dizer a verdade?
- Acredito.
- Então por que ia Lady Alroy ali?
- Meu caro Geraldo - respondi - Lady Alroy era simplesmente uma mulher com a
mania do mistério. Alugava aqueles quartos somente pelo prazer de ir ali, de véu descido
e imaginando ser uma heroína. Tinha paixão pelo segredo, mas não passava de uma
simples esfinge sem segredo.
- Estou convencido disto - repliquei.
Lorde Murchison tirou do bolso a carteira de marroquim, abriu-a e olhou a
fotografia.
Quem sabe? - disse afinal.
1 – Vidente
2 – Minha bela desconhecida
- Coração Denunciador:
É verdade tenho sido nervoso, muito nervoso, terrivelmente nervoso! Mas por que ireis dizer que sou louco? A enfermidade me aguçou os sentidos, não os destruíram, não os entorpeceram. Era penetrante, acima de tudo, o sentido da audição. Eu ouvia todas as coisas, no céu e na terra. Muitas coisas do inferno eu ouvia. Como, então, sou louco? Prestai atenção! E observai quão lucidamente, quão calmamente posso contar toda a história.
É impossível dizer como a idéia me penetrou primeiro no cérebro, uma vez concebida, porém, ela perseguiu dia e noite. Não havia motivo. Não havia cólera. Eu gostava do velho. Ele nunca fizera mal. Nunca me insultara. Eu não desejava seu ouro. Penso que era o olhar dele! Sim, era isso! Um de seus olhos parecia com o de um abutre... um olho de cor azul pálida, que sofria de catarata . Meu sangue se enregelava sempre que ele caía sobre mim; e assim, pouco a pouco, bem lentamente , fui-me decidindo a tirar a vida do velho e assim libertar-me daquele olho para sempre.
Ora, aí é que estava o problema. Imaginais que sou louco. Os loucos nada sabem. Deveríeis, porém, ter-me visto. Deveríeis ter visto como procedi cautelosamente, com que prudência, com que previsão, com que dissimulação, lancei mão à obra!
Eu nunca fora mais bondoso para com o velho do que durante a semana inteira, antes de matá-lo. todas as noites, por volta da meia-noite, eu girava o trinco da porta de seu quarto e abria-a... oh! Bem devagarzinho! E depois, quando a abertura era suficientemente para conter minha cabeça, eu introduzia uma lanterna com tampa, toda velada, bem velada, de modo que nenhuma luz se projetasse para fora, e em seguida enfiava a cabeça. Oh! Teríeis rido ao ver como enfiava habilmente! Movia-a lentamente, muito, muito lentamente, a fim de não perturbar o sono do velho. Levava uma hora para colocar a cabeça inteira além da abertura, até pode-lo ver deitado na cama. Ah! Um louco seria precavido assim? E depois, quando minha cabeça estava bem dentro do quarto, eu abria a tampa da lanterna cautelosamente... oh! Bem cautelosamente!... cautelosamente... por que a dobradiça rangia... abria-a só até permitir que apenas um débil raio de luz caísse no olho de abutre. E isto eu fiz durante sete longas noites... sempre precisamente à meia-noite... e sempre encontrei o olho fechado. Assim, era impossível fazer minha tarefa, porque não era o velho que me perturbava, mas seu olho Diabólico. E todas as manhãs, sem temor, chamando-o pelo nome com ternura e perguntando como havia passado a noite. Por aí vedes que ele precisaria ser um velho muito perspicaz para suspeitar que todas as noites, justamente às doze horas, eu o espreitava, enquanto dormia.
Na oitava noite, fui mais cauteloso do que de hábito, ao abrir a porta. O ponteiro dos minutos de um relógio mover-sei-ia mais rapidamente do que meus dedos. Jamais, antes daquela noite, sentira eu tanto a extensão de meus próprios poderes, de minha sagacidade. Mal conseguia conter meus sentimentos de triunfo. Pensar que ali estava eu, a abrir a porta, pouco a pouco, e que ele nem sequer sonhava com meus atos ou pensamentos secretos... Ri com gosto, entre dentes, e essa idéia; e talvez ele me tivesse ouvido, porque se moveu de súbito na cama, como se assustado. Pensava talvez que recuei? Não! O quarto dele estava escuro como piche, espesso de sombra, pois os postigos se achavam hermeticamente fechado, por medo aos ladrões. E eu sabia, assim, que ele não podia ver a abertura da porta; continuei a avançar, cada vez mais, cada vez mais.
Já estava com a cabeça dentro do quarto e a ponto de abrir a lanterna, quando meu polegar deslizou sobre o fecho da porta e o velho saltou na cama gritando: "Quem está aí?"
Fiquei completamente silencioso e nada disse. Durante uma hora inteira não movi um músculo e, por todo esse tempo, não o ouvi deitar-se de novo: ele ainda estava sentado na cama, à escura; justamente com eu fizera, noite após noite, ouvindo a ronda da morte próxima.
Depois, ouvi um leve gemido e notei que era um gemido de terror mortal. Não era um gemido de dor ou pesar, oh não! Era o som grave e sufocado. Bem conhecia esse som. Muitas noites, ao soar a meia-noite, quando o mundo inteiro dormia, ele irrompia de meu próprio peito, aguçando, com o seu eco espantoso, os terrores que me aturdiam. Disse que bem o conhecia. Conheci também o eu o velho sentia e tive pena dele, embora abafasse o riso no coração. Eu sabia que ele ficara acordado, desde o primeiro leve rumor, quando se voltar na cama. Daí por diante, seus temores foram crescendo. Tentara imaginá-los sem motivo mas não fora possível. Dissera a si mesmo; "É só o vento na chaminé", ou "é só um rato andando pelo chão", ou "foi apenas um grilo que cantou um instante só": sim, ele estivera tentando animar-se com essas suposições, mas tudo fora em vão. Tudo em vão, porque a Morte, ao aproximar-se dele, projetava sua sombra negra para frente, envolvendo nela a vítima. E era a influência tétrica dessa sombra não percebia que o levava a sentir - embora não visse, nem ouvisse - a sentir a presença de minha cabeça dentro do quarto.
Depois de esperar longo tempo, com muita paciência, sem ouvi-lo deitar-se, resolvi abrir um pouco, muito, muito pouco, a tampa da lanterna. Abri-a, podeis imaginar o quão furtivamente; até que, por fim, um raio de luz apenas, tênue como o fio de uma teia de aranha, passou pela fenda e caiu sobre o olho de abutre.
Ele estava aberto; todo, plenamente aberto. E, ao contemplá-lo, minha fúria cresceu. Vi-o, com perfeita clareza; todo de um azul desbotado, com uma horrível película a cobri-lo, o que me enregelava até a medula dos ossos. Mas não podia ver nada mais da face, ou do corpo do velho, pois dirigira a luz como por instinto, sobre o maldito lugar.
Ora, não vos disse que apenas é superacuidade dos sentidos aquilo que erradamente julgais loucura? Repito, pois, que chegou a meus ouvidos em som baixo, monótono, rápido, como o de um relógio, quando abafado com algodão. Igualmente eu bem sabia que som era. Era o bater do coração do velho. Ele me aumentava a fúria, como o bater um tambor estimula a coragem do soldado.
Ainda aí, porém, refreei-me e fiquei quieto. Tentei manter tão fixamente quanto pude a réstia de luz sobre o olho do velho. Entretanto, o infernal tam-tam do coração aumentava. A cada instante ficava mais alto, mais rápido! Cada vez mais alto, repito, a casa momento! Prestai-me bem atenção? Disse-vos que sou nervoso: sou. E então, àquela hora morta da noite, tão estranho ruído excitou em mim um terror incontrolável. Contudo, por alguns minutos mais, dominei-me e fiquei quieto. Mas o bater era cada vez mais alto. Julguei que o coração ia rebentar. E, depois, nova angústia me aferrou: o rumor poderia ser ouvido por um vizinho! A hora do velho tinha chegado! Com um alto berro, escancarei a lanterna e pulei para dentro do quarto. Ele guinchou mais uma vez... uma vez só. Num instante arrastei-o para o soalho e virei a pesada cama sobre ele. Então sorri alegremente por ver a façanha realizada. Mas, durante muitos minutos, o coração continuou a bater, com som surdo. Isto, porém, não me vexava. Não seria ouvido através da parede. Afinal cessou. O velho estava morto. Removi a cama e examinei o cadáver. Sim, era um pedra, uma pedra morta. Coloquei minha mão sobre o coração e ali a mantive durante muitos minutos. Não havia pulsação. Estava petrificado. Seu olho não me perturbaria.
Se ainda pensais que sou louco, não mais pensareis, quando eu descrever as sábias precauções que tomei para ocultar o cadáver. A noite avançava e eu trabalhava com muita pressa, porém em silêncio. Em primeiro lugar, esquartejei o corpo. Cortei-lhe a cabeça, os braços e as pernas.
Arranquei depois três pranchas do soalho e coloquei tudo entre os vãos. Depois recoloquei as tábuas, com tamanha habilidade e perfeição, que nenhum olhar humano, nem mesmo o dele, poderia distinguir qualquer coisa suspeita. Nada havia a lavar, nem mancha de espécie alguma, nem marca de sangue. Fora demasiado prudente no evitá-las. Uma tina tinha recolhido tudo... ah! Ah! Ah! Terminadas todas essas tarefas, eram quatro horas. Mas ainda estava escuro, como se fosse meia-noite. Quando o sino soou a hora, bateram a porta da rua. Desci para abri-la, de coração ligeiro,... pois que tinha eu agora a temer? Entraram três homens que se apresentaram , com perfeita mansidão, com soldados de polícia. Fora ouvido um grito por um vizinho, durante a noite. Despertara-se a suspeita de um crime. Tinha-se formulado uma denúncia à polícia e eles, soldados , tinham sido mandados para investigar.
Sorri... pois que tinha eu a temer? Dei as boas vindas aos cavalheiros. O grito, disse eu, fora meu mesmo, em sonhos. O velho, relatei, estava ausente, no interior. Levei meus visitantes a percorrer toda a casa. Pedi que dessem busca... completa. Conduzi-os, afinal, ao quarto dele. Mostrei-lhe suas riquezas, em segurança inatas. No entusiasmo de minha confiança, trouxe cadeiras para o quarto e mostrei desejos de que eles ficassem ali, para descansar de suas fadigas, enquanto eu mesmo, na desenfreada audácia do meu perfeito triunfo, colocava minha própria cadeira , precisamente sobre o lugar onde repousava o cadáver da vítima.
Os soldados ficaram satisfeitos. Minhas maneiras os haviam convencido. Sentia-me singularmente a vontade. Sentaram-se e, enquanto eu respondia cordialmente, conversavam coisas familiares. Mas, dentro em pouco, senti que ia empalidecendo e desejei que eles se retirassem. Minha cabeça me doía e parecia-me ouvir zumbidos nos ouvidos; eles, porém, continuavam sentados e continuavam a conversar. O zumbido tornou-se mais distinto. Continuou e tornou-se ainda mais distinto: eu falava com mais desenfreio, para dominar a sensação: ela, porém, continuava a aumentava sua perceptibilidade, até que, afinal, descobri que o barulho não era dentro dos meus ouvidos.
É claro que então minha palidez aumentou sobre posse. Mas eu falava ainda mais fluentemente e num tom de voz muito elevada. Não obstante, o som se avolumava... E que podia fazer? Era um som grave, monótono, rápido... muito semelhante ao de um relógio envolto em algodão. Respirava com dificuldade... E no entanto, os soldados não o ouviram. Falei mais depressa ainda, com mais veemência. Mas o som aumentava constantemente. Levantei-me e fiz perguntas a respeito de ninharias, num tom bastante elevado, e com violenta gesticulação, mas o som constantemente aumentava. Por que não se iam embora? Andava pelo quarto acima e abaixo, com largas e pesadas passadas, como se excitado até a fúria pela vigilância dos homens... mas o som aumentava constante. Oh! Deus! Que poderia eu fazer? Espumei... enraiveci-me... praguejei! Fiz girar a cadeira, sobre a qual estivera sentado, e arrastei-a sobre as tábuas, mas o barulho se elevava acima de tudo e continuamente aumentava. Tornou-se então mais alto... mais alto... mais alto! E os homens continuavam ainda a passear, satisfeitos e sorriam. Seria possível que eles não ouvissem? Deus Todo Poderoso!... não, não! Eles suspeitavam!.. Eles sabiam!... Estavam zombando do meu horror!... Isto pensava eu e ainda penso. Outra coisa qualquer, porém, era melhor que essa agonia! Qualquer coisa era mais tolerável que essa irrisão! Não podia suportar por mais tempo aqueles sorrisos hipócritas! Sentia que devia gritar ou morrer!... E agora... de novo! Escutai! Mais alto! Mais alto! Mais alto! Mais alto! Mais alto...
- Visões! - trovejei - Não fingam mais! Confesso o crime!... Arranquem as pranchas!.. aqui, aqui! ... ouçam o bater do ser horrendo coração!
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